
Desde que iniciou um ardente caso de amor com sedutora ovelha de seu aprisco, o cardeal arcebispo perdeu a paz. Rachado ao meio – metade deleitava-se na cama, a outra metade flagelava-se pela vil traição aos preceitos da Igreja –, sua eminência perdeu o rumo. Nem amante, nem vigário, passou a exercer, vagamente, tanto um papel, quanto o outro. Recolhido nas sombras da própria tortura, irritava-se com os fiéis, destratava os subordinados, errava os passos das missas e brigava, igualmente, com latifundiários e despossuídos. Aliás, apenas por esse motivo, o Vaticano chamou-o às falas. Dias depois de, mais uma vez e em chamas, driblar os seus anseios pela mulher relativamente amada, o cardeal-arcebispo despejou o desejo frustrado na cabeça de um líder do MST, mandando-o plantar batatas. Tiro e queda. O infeliz não perdeu tempo, foi se queixar ao bispo. Ou melhor, ao super bispo: o cardeal primaz do Brasil, residente na Bahia.
No palácio episcopal do cardeal-arcebispo, o telefone não demorou a tocar. Com voz autoritária, o cardeal-primaz, com mais estrelas no ombro, passou uma descompostura no colega politicamente incorreto, que ousara despachar o coitado do Sem Terra:
- Aonde você quer que o landless plante batatas? É nossa obrigação...
Nervosíssimo, desmarcara novo encontro com a eleita, o cardeal-arcebispo interrompeu a lengalenga:
- Não chateie, tenho problemas de sobra.
Dito isto, bateu o telefone e atirou-se angustiado aos pés do altar. Enésima, e mais uma vez inútil, tentativa de resolver com Deus o problema que o consumia. Justiça seja feita, com Deus ele se entendia. Ambos haviam concluído que nenhum livro sagrado obrigava aos homens, mesmo sendo eles prelados, à tortura de viver sem os prazeres da carne. O próprio Pai incitara a humanidade a multiplicar-se. Entre uma oração e outra, o cardeal-arcebispo lembrava aos céus que, sem treino, multiplicar-se é impossível:
- Olha, neste assunto, o mais fino e requintado momento da Criação, competência é fundamental. E ninguém é competente sem treinar ad nauseam.
Mal acabou de explicar-se, viu o Senhor lhe piscar o único olho, pintado em um triângulo estranhíssimo no teto da Igreja. Fiquei de miolo mole, pensou, enquanto despia os paramentos no canto da sacristia - a cabeça despachante já se embolando com a dama que o tirava do sério.
Por seu lado, dona Risoleta Esperidião, senhora de fino trato - tão delicada e tão fina que escalava as paredes, mas honrava o compromisso com o cardeal-arcebispo -, mantinha-se recatada, esperando os momentos em que o príncipe metafísico adentrava em sua casa arrancando as roupas, murmurando obscenidades, pedindo coisas tão loucas que só na cabeça do demo. Mistura de educação tradicional com os flagelos da vida, dona Risoleta desenvolvera a capacidade de, sem preces, agüentar firme as longuíssimas semanas em que a eminência sumia. Quando o corpo delirava, a discreta Risoleta desandava a tricotar sapatinhos de lã para órfãos desvalidos – tricotara o suficiente para calçar, com folga, milhares de centopéias.
Assim, passaram-se os anos. Poucos, é verdade. Mas o suficiente para dona Risoleta convencer-se de que o cardeal-arcebispo, além de cardeal e de arcebispo, era também meio doido. Pois não é que após o amor, nu e de solidéu púrpura, o chef-cardeal-arcebispo preparava receitas maravilhosas? Às vezes, os dois comiam na cama, entre beijos e abraços, um gateau de chocolate que o cardeal-arcebispo adorava degustar – nem sempre, convencionalmente. Naqueles raros e rápidos momentos de felicidade, dona Risoleta entendia que se esperar era a sua sina, sempre iria esperar. O cardeal-arcebispo, de competências várias, valia o sacrifício.
Não passava pela cabeça de dona Risoleta Esperidião a possibilidade de o cardeal-arcebispo abandoná-la, trocando-a pela Igreja. Pela igreja só, não. Pela opção de entregar-se ao cerne da fé católica. Mas foi o que ele fez. Na verdade, no vai e vem entre a cama prazerosa e a pose sacrossanta de religioso emérito, o cardeal-arcebispo cansou-se das crises de consciência, das noites mal dormidas, da imensa trabalheira de despistar o rebanho para cair nos braços da fiel mais ardorosa. Então, como quem não quer nada, o reverendíssimo começou a esticar os olhos em direção ao coroinha que balançava o turíbulo nas cerimônias nobres. Jovem imberbe, um efebo.
Esquecido de dona Risoleta tricotando toneladas de sapatinhos - órfãos extra e intraterrenos têm os seus pés aquecidos graças à angústia dela -, o cardeal-arcebispo vive hoje em santa paz. Sem culpas, sem dor na alma, sem sequer se deslocar do palácio episcopal, ele cumpre, diariamente, o intrigante preceito da pós-modernidade romana.
Tornou-se pedófilo contumaz. Mais ortodoxo, impossível.
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